MERCADO E SOCIEDADE SÃO A MESMA COISA?

    – Domingos Crosseti Branda –   

  1.Introdução.

  É muito comum escutarmos que o mercado é o responsável por muitas das desgraças humanas. Esse é uma condenação infundada, pois, na nossa era moderna, em nenhum período de tempo e em nenhum país o mercado existiu de forma livre. Então, como se pode condená-lo? É possível que essas condenações existam por uma revolta contra a razão, já que não há compreensão do que realmente seja o mercado e os benefícios que ele traz consigo. E, para esse esclarecimento, é necessário começar com uma pergunta elementar: O que é a economia de mercado?                                                                                                                 

  A economia de mercado é o sistema social baseado na divisão do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção. Todos agem por conta própria; mas as ações de cada um procuram satisfazer tanto as suas próprias necessidades como também as necessidades de outras pessoas. Ao agir, todos servem seus concidadãos. Por outro lado, todos são por eles servidos. Cada um é ao mesmo tempo um meio e um fim; um fim último em si mesmo e um meio para que outras pessoas possam atingir seus próprios fins. (Mises, 1990, p. 360).

2.Aparição e evolução do mercado.

  Em sua vida primitiva, o homem era nômade e vivia da coleta — ou seja, suas ações visavam o presente frente à incerteza e os perigos que rondavam sua vida (predadores, escassez de alimentos, clima etc). Produzia artigos necessários à autossuficiência, como vestimenta e ferramentas de caça primitivas, que eram muito ligados ao próprio criador na medida em que eram praticamente eles os únicos a poder ou saber utilizá-los. Seria uma espécie de artigos em extensão ao próprio corpo. Sob esse aspecto, havia o reconhecimento (ainda que de forma primitiva) de uma instituição anterior às trocas: a propriedade privada.

  Assim, desde o momento em que os grupos humanos começaram não somente a reconhecer, mas também a respeitar essa instituição da propriedade privada, cada indivíduo pôde começar a gerir aqueles bens que se encontravam sob seu domínio. Ou seja, surgiu a idéia de que o homem tinha um domínio sobre as coisas que lhe pertenciam e que, portanto, podia desfrutar delas tanto diretamente como transmiti-las, recebendo em troca outras coisas de seus legítimos donos. Mas para isso era necessário um mecanismo para conectar seu mundo interior e subjetivo a um mundo exterior e objetivo.

  A conexão entre o mundo interior, individual e subjetivo de cada sujeito se dava quando encontrasse um ambiente livre pra manifestar seu desejo por algo, bem como o de manifestar sua oferta de algo que alguém pudesse querer. Os bens e serviços eram trocados primeiramente de forma direta, segundo valorações não iguais, mas sim inversas entre os negociantes. Esse comportamento evidenciou ao homem primitivo que, ao agir dessa forma, ele reduziria suas incertezas como coletor e caçador.

  Assim, ele começou a voltar-se não só para o presente, como também para o futuro, já que a redução da incerteza lhe aumentava o horizonte temporal (mesmo que apenas intuitivamente). Desse modo, passou a empreender e a produzir tanto bens de usufruto direto, como também a se especializar na produção de bens ou de partes de bens que outros pudessem usufruir (como, por exemplo, uma peça para uma arma de caça rudimentar e não a arma inteira para uso próprio) e trocá-los no mercado.

  Surgia, assim, uma instituição (esquema pautado de comportamento que se cria de forma espontânea) baseada no reconhecimento da propriedade privada, na divisão do trabalho e na atividade empresarial fruto da inata capacidade criativa do ser humano — ou seja, surgiu o mercado. Mais tarde e em virtude dele se criou outra instituição: o dinheiro.

  O mercado, portanto, passou a ser um processo mais eficiente para o ser humano atingir fins individuais; mais eficiente em relação à sua vida autossuficiente. Sedimentou-se em hábito corriqueiro, com milhares e milhares de interações humanas complexas e com fins distintos. Por gerar constantemente novos fins, em virtude das novas informações e conhecimento produzidos no decorrer do tempo, o mercado torna-se um processo ad infinitum. Permaneceu ao longo do tempo um processo incompreensível ao ser humano, que não obstante se beneficiava dele.

  3. O mercado, então, é eficiente?

  O mercado é dinamicamente eficiente ao longo do tempo e tende ao equilíbrio sem, entretanto, alcançá-lo (o tempo é um fator crucial a ser considerado na ciência econômica, pois sendo um elemento presente em nossas vidas e autoevidente, é um grave erro não tê-lo como fundamento em qualquer teoria econômica). O exercício da função empresarial descobre descoordenações no mercado (desajuste entre demanda e oferta de bens e serviços) e atua de forma coordenadora, transformando-a em benefício empresarial. É dessa forma que se promove a criação de riqueza e prosperidade geral.

  Não se deve esquecer que, historicamente, o argumento a favor do livre mercado nunca se embasou em situações de mercado em equilíbrio, mas sim em sua capacidade de resolver situações de descoordenação. Nesse sentido, esse conceito dinâmico de mercado como processo e não como uma situação estática é imune ao ataque dos intervencionistas que sustentam a existência de falhas de mercado, onde seu argumento consiste em arbitrar um modelo de equilíbrio atemporal e considerar tudo que estiver fora desse equilíbrio como uma falha de mercado. Fica evidente sua inconsistência por dois motivos: a arbitrariedade e a atemporalidade, isso sem considerar a premissa falsa da informação perfeita (pois simplesmente não podemos gerir a totalidade das informações e conhecimento disperso na sociedade, necessários para planificá-la).

  Temos, então, de um lado o mercado como instituição: as pessoas em si com suas interações sociais no objetivo de atender a seus fins distintos mediante a cooperação social, a cada dia coordenando e descobrindo formas de atenuar a descoordenação. De outro, organizações que intervêm no mercado e desvirtuam sua principal característica, que é, justamente, a capacidade de adaptar-se a situações de constantes mudanças.

  Assim, qualquer intervenção coercitiva no mercado se traduz em dano nesse arranjo espontâneo e eficiente, pois obstrui a atividade empresarial e seus efeitos positivos.

  Conclusão.

  Sociedade e mercado são instituições intimamente relacionadas. Não são instituições estáticas, mas sim dinâmicas, um processo que resulta na união entre as pessoas e grupos por meio da relação comercial, com maiores chances de sobrevivência em relação à autossuficiência, um maior grau de bem-estar, além de gerar segurança e paz social (em virtude das anteriores).

  Essa é a razão de viver em sociedade: atender de forma mais eficiente nossas necessidades humanas; de forma mais eficiente do que se vivêssemos de forma autossuficiente. O conceito de sociedade, consequentemente, acaba por ser semelhante ao de mercado:

  A sociedade é a conseqüência do comportamento propositado e consciente. Isso não significa que os indivíduos tenham firmado contratos por meio dos quais teria sido formada a sociedade. As ações que deram origem à cooperação social, e que diariamente se renovam, visavam apenas à cooperação e à ajuda mútua, a fim de atingir objetivos específicos e individuais. Esse complexo de relações mútuas criado por tais ações concertadas é o que se denomina sociedade. Substitui, pela colaboração, uma existência isolada — ainda que apenas imaginável — de indivíduos. Sociedade é divisão de trabalho e combinação de esforços. (Mises, 1990, p. 201).

  Em sentido amplo, inclusive, o mercado é a própria sociedade, se for considerado como um processo de tipo espontâneo, de interações humanas muito complexas, moldado em preços monetários e movidas pela função empresarial (HUERTA DE SOTO, 2004, p. 84).

  Logo, a intervenção no mercado é infundada e prejudicial ao próprio mercado e à sociedade, causando grave dano à sua eficiência. A política governamental (inflação, impostos, controle de preços, subsídios, leis de regulação da concorrência, incentivos ou proibições de consumo etc.), por exemplo, impede que o próprio mercado execute eficazmente os ajustes e coordenações necessários. Portanto, a origem das desgraças humanas supostamente advindas do livre mercado não advém dele, mas sim da intervenção no seu espontâneo e eficiente funcionamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOETTKE, P. What Happened to “Efficient Markets”? The Independent Review, v. 14, n. 3, Winter 2010.

HAYEK, F. La fatal arrogancia. 3.ed. Madrid: Unión Editorial, 2010.

HUERTA DE SOTO, J. Estudios de economía política. 2.ed. Madrid: Unión Editorial, 2004.

Socialismo, cálculo económico y función empresarial. 4.ed. Madrid: Unión Editorial, 2010.

MESSEGUER, C. La teoría evolutiva de las instituciones. 2.ed. Madrid: Unión Editorial, 2009.

MISES, L.; Ação Humana: um tratado de economia; 3.ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal. 1990.