LIBERDADE E ECONOMIA AUSTRÍACA NO PRINCIPADO DE LIECHTENSTEIN
– Andreas Kohl-Martinez –
Estamos indo na direção errada. Uma expansão da influência do estado não tem lugar num mundo globalizado. Ainda assim, conceitos nacionalistas e socialistas sobreviveram em quase todos os estados. Devemos dar adeus às ideias nacionalistas e socialistas, na medida do possível, e transferir mais responsabilidade para os cidadãos. Não precisamos de mais, mas de consideravelmente menos estado. Devemos fortalecer a vontade de exercer a solidariedade privada e fortalecer as famílias enquanto fundação da sociedade.
S.A.R. Príncipe Soberano Hans-Adam II de Liechtenstein, numa entrevista para a edição de janeiro/fevereiro de 2007 do Handelszeitung.
Numa era de superestados em ascensão e uma crescente centralização, ou, usando outras palavras, nestes tempos de um conflito cada vez mais intenso entre as agendas nacionalistas e socialistas, sempre onipresentes, é normal se esquecer — ou, na realidade, nem sequer ficar sabendo — dos poucos lugares no mundo onde a liberdade individual supera estes conceitos.
Liechtenstein é um destes lugares, e ainda que seu território se estenda somente por um trecho de aproximadamente 96 km² de terreno montanhoso na Europa Central, suas ideias radicais acerca dos limites do aparato estatal estão ganhando um destaque cada vez maior no resto do mundo. Mas como, e por que, Liechtenstein está se afastando das tendências estatistas que atormentam o resto do mundo em maior ou menor escala? Para obter uma resposta, é importante primeiro entender os sistemas políticos fundamentais que estão fornecendo as bases para a ascensão da liberdade deste principado.
Além de sua vizinha, a Suíça, Liechtenstein é o único estado no qual a democracia direta está totalmente desenvolvida, e a mobilização de metade de seus 35.000 cidadãos é suficiente para passar ou abolir qualquer lei, regulamentação ou até mesmo uma constituição. Também há um elemento de democracia indireta, através de oligarcas eleitos democraticamente, que pertencem a partidos políticos (tal como, infelizmente, o cerne de todas as democracias ocidentais), que partilham, de maneira mais ou menos equivalente, o poder governamental com a Casa Real, financiada pelo setor privado. No entanto, estes setores do meio político de Liechtenstein (o parlamento e a monarquia), podem ser removidos através de um ato de democracia direta; iniciativas populares precisam de 1.000 assinaturas (5% do eleitorado) ou a aprovação de três municípios para colocar em efeito um voto popular, no que diz respeito a leis. Se a iniciativa tiver como meta a alteração da constituição, são necessárias 1.500 assinaturas ou a aprovação de quatro municípios.
Naturalmente, um anarquista poderia alegar que um monarca de uma família que reinou por séculos não teria como apoiar a abolição do estado. Em resposta a isso, gostaria de ressaltar que os Príncipes de Liechstenstein não recebem o pagamento por suas funções como chefe de estado dos contribuintes ou do próprio estado. O custo total de nossa monarquia, ao contrário de quase todas as outras monarquias, é coberto pelos fundos privados do Príncipe ou da Casa Real.
S.A.R. Príncipe Soberano Hans-Adam II de Liechtenstein, The State in the Third Millennium, Introdução (Página 3)
Além disso, existem 11 municípios autônomos em Liechtenstein, e cada um deles tem também sistemas individuais de democracia direta regional, sistemas esses protegidos constitucionalmente pelo estado de Liechtenstein e que incluem, de acordo com a reforma constitucional de 2003, o direito de votar pela secessão (a ser abordado posteriormente). Isso significa que, se aproximadamente 183 dos 366 cidadãos do município de Plancken se reunissem amanhã para votar pela secessão de Plancken de Liechtenstein, para se juntar a outro país ou até mesmo formar uma entidade soberana ou anárquica, eles teriam a garantia constitucional de fazê-lo.
O estado deve tratar seus cidadãos como uma empresa trata os seus clientes. Para que isto funcione, o estado também precisa de concorrência. Apoiamos, portanto, o direito de autodeterminação a nível municipal, para pôr um fim ao monopólio do estado sobre o seu território.
S.A.R. Príncipe Soberano Hans-Adam II de Liechtenstein
À primeira vista, nada disso parece ter muito a ver com o libertarianismo; afinal, existe muita coisa errada com a possibilidade de um ataque de 51% (é só perguntar à comunidade Bitcoin), e existem algumas comparações muito específicas a serem feitas entre a democracia e o estupro coletivo, mas, no contexto de uma comunidade tão unida e integrada como Liechtenstein, ela acaba criando um senso de segurança contra a natureza expansionista do governo; uma relação com o estado semelhante à de uma entidade comercial privada, na qual a concorrência existe numa escala satisfatória, ainda que os ‘clientes’, nesse caso, sejam grupos de 366 a 5811 pessoas (isto é, a população nos municípios menos e mais densamente povoados).
Mas quem é responsável por criar este modelo de estado? Será Liechtenstein um país de sábios que, através de algum tipo de iluminação divina, se viram capazes de proteger suas liberdades enquanto nós perdemos cada vez mais a nossa? Dificilmente, e, na realidade, uma olhada rápida na rica história do principado mostra uma onda de nacionalismo e socialismo equivalente à que atingiu todos os países vizinhos nos séculos XIX e XX.
No entanto, uma coisa fez com que Liechtenstein se tornasse um tanto singular: a incrível sabedoria de seus monarcas, originada de sua capacidade de refletir desinteressadamente sobre a história e aprender com ela. Isto se tornou muito claro no livro do Príncipe Hans-Adam II, The State in the Third Millennium (pode ser encomendado na Amazon — ou diretamente de sua editora), que é, nas palavras do próprio Hans-Adam, ‘um livro de receitas políticas, reunidas ao longo dos séculos por meus ancestrais e das décadas por mim mesmo’. Este livro é uma leitura muito interessante tanto para minarquistas quanto para anarcocapitalistas, pois ainda que o príncipe rejeite a ‘anarquia’ em si (ou, pelo menos, a sua visão dela), o seu reconhecimento do estado como ‘uma ameaça real à vida e à liberdade dos indivíduos’ faz com que ele clame por uma surpreendente redefinição libertária do estado.
Gostaria de expor neste livro os motivos pelo qual o estado tradicional, enquanto empreendimento monopolístico, não somente é um empreendimento ineficiente com uma péssima relação entre preço e performance, mas, o que é mais importante, se torna um perigo cada vez maior para a humanidade quanto mais ele dura.
S.A.R. Príncipe Soberano Hans-Adam II de Liechtenstein, The State in the Third Millennium, Introdução (Página 2)
Tentarei expor a visão de Hans-Adam para o estado do amanhã de uma maneira concisa que terá uma atração especial para os leitores de Rothbard ou outros libertários modernos. Para isso, imaginemos que ocorra uma revolução anarcocapitalista nos Estados Unidos; o IRS (Receita Federal) teria suas atividades encerradas, bem como a NSA, a CIA, o DEA, e todas as outras instituições governamentais que fundamentam suas próprias existências no uso da força e da violação do princípio de não-agressão. Todos os outros setores do governo passam então a ficar sem fundos, pois os impostos deixam de existir.
A questão que Hans-Adam II parece nos perguntar nesta situação é a seguinte: será que todas estas instituições, agora falidas, desaparecerão, ou algumas delas poderão sobreviver como parte de uma empresa grande, privada, de multisserviço, que segue uma constituição que também é aceita pelos clientes da empresa (isto é, essencialmente, o que ele chama de “estado” ao longo de The State in the Third Millennium)? Em outras palavras, a Constituição dos Estados Unidos deveria ser rasgada e esquecida, ou poderia sobreviver na forma de um contrato voluntário? Não tenho, pessoalmente, uma resposta, porém a opinião de Hans-Adam é que, uma vez que determinarmos que os estados não mais podem exercer o seu domínio através da coerção, esta solução de um governo voluntário seria preferível, inicialmente; afinal, os seres humanos são criaturas de hábitos, e já fomos expostos a mais de três milênios de estatismo — dito isso, ele também reconhece que
Para alguns, os passos deste livro parecerão muito grandes; para outros, pequenos demais. No entanto, quiçá no quarto milênio, a humanidade possa fazer a pergunta: ‘Por que precisamos de um estado?'” . “Criemos um país no qual, na medida do possível, os próprios indivíduos, e não o estado, tomem as decisões de cada indivíduo, e decidam a respeito de suas necesidades.
S.A.R. Príncipe Alois, Príncipe Herdeiro de Liechtenstein; 16 de agosto de 2005
Mas se o Príncipe está tão entusiasmado com os direitos individuais, por que diabos os indivíduos de Liechtenstein não têm a liberdade de se separar de seu país, e por que é necessário que eles tenham o esforço de persuadir metade de seus municípios para abandonar o governo compulsório? Uma investigação mais aprofundada da reforma constitucional de 2003 rende informações fascinantes a esse respeito, e parece que Hans-Adam inicialmente teria feito uma petição pelo direito de autodeterminação não só a nível municipal, mas também a nível individual, o que teria permitido aos cidadãos que se separassem não só a si próprios, mas também sua propriedade privada, do país, transformando numa possibilidade legal o conceito de “cidadãos soberanos”. Em The State in the Third Millennium, o Príncipe Hans-Adam II declara:
Nós, da Casa Real, estamos convencidos de que a monarquia de Liechtenstein é uma parceria entre o povo e a Casa Real, uma parceria que deve ser voluntária e baseada no respeito mútuo. Enquanto nós, da Casa Real, estivermos convencidos de que a monarquia pode contribuir positivamente para o país e seu povo, de que uma maioria do povo assim o deseja, e de que certas condições são satisfeitas, tais como a autonomia de nossa família tal como estabelecida pelas leis de nossa casa, forneceremos de bom grado o chefe de estado.
Devemos também, no entanto, nos lembrar de que a Casa Real tem o poder de vetar qualquer projeto de lei proposto pelo parlamento, e que o contrário também pode acontecer. Neste caso, o parlamento ameaçou vetar a emenda constitucional proposta por Sua Serena Alteza afirmando que esta nova possibilidade legal poderia ser abusada de maneira imprevisível e gerar o caos, de modo que esta proposta foi reduzida para secessão apenas a nível municipal, tal como ela vigora hoje em dia. Tudo isso é explicado detalhadamente nas páginas 283-284 de “Freedom and Prosperity in Liechtenstein: A Hoppean Analysis”, de Andrew Young, do Journal of Libertarian Studies, vol. 22, um grande texto reminiscente dos argumentos de Hans-Hermann Hoppe a favor da monarquia sobre a democracia, que nos fornece nossa primeira ligação entre Liechtenstein e a Economia Austríaca.
A ligação, no entanto, não para por aí; imaginem minha surpresa quando descobri que muitos membros da Casa Real estão envolvidos com um think-tank de Economia Austríaca, o ECAEF. Eles acreditam tanto na economia de livre-mercado que sentiram a necessidade de apoiar pessoalmente a causa da Economia Austríaca, uma escola econômica que, de outra maneira, não teria qualquer representação entre os chefes de estado.
Existe desigualdade em todas as formas sociais, e sempre existirá. […] A redistribuição [forçada] não pode ser a solução, [a tráves disso] a economia se enfraquece.
S.A.R. Príncipe Michael Von Liechtenstein, presidente do ECAEF — European Center of Austrian Economics Foundation — durante uma entrevista em janeiro de 2013.
O príncipe Michael também citou Ludwig von Mises nesta ocasião, dizendo: “As riquezas dos ricos não são a causa da pobreza de alguém.”
A fundação é, obviamente, totalmente financiada pelo setor privado, assim como a Casa Real. Entre outras atividades, o ECAEF sedia uma conferência anual e uma competição de ensaios (o tópico deste ano: “Confiar o nosso Dinheiro a Políticos é como Deixar um Gato Tomando Conta de um Pote de Creme de Leite”). Ela também é responsável por uma série de press releases, incluindo artigos que por vezes são publicados em jornais de Liechtenstein, e tem laços com a equivalente europeia dos Estudantes pela Liberdade.
As elites políticas e suas burocracias sempre tentaram restringir as liberdades civis.” “Afinal, o conhecimento das circunstâncias do indivíduo propicia possibilidades para o abuso e, assim, a capacidade de restringir a liberdade individual através de maiores controles governamentais. Um ciclo vicioso, um círculo vicioso sem fim.
A. R. Príncipe Michael Von Liechtenstein, presidente do ECAEF, sobre a expansão do Estado de Vigilância (uma alusão à NSA e outras agências de espionagem) na 41ª edição (28 de maio de 2014) do Finanz und Wirtschaft
Convido os leitores deste artigo a tirarem suas próprias conclusões sobre Liechtenstein, sua família soberana, e se ele é ou não um exemplo dos valores libertários que nos são tão caros; mas, pessoalmente, não preciso mais ser convencido — perdi a conta de quantas vezes me mandaram me mudar para a Somália desde que adotei o rótulo de “anarquista”, e, honestamente, isto não me incomoda tanto, uma vez que derrubar a falácia de que “Somália = Anarquia Libertária” não representa mais um desafio tão grande. Mas este argumento frequentemente vem com o questionamento sobre a existência (e a suposta viabilidade) de um país libertário. Tenho vontade de agradecer a Liechtenstein; agora podemos provar que a liberdade funciona.